BAÚ LITERÁRIO

Tratam-se de textos ( resumos de ensaios) que são publicados a cada 15 dias no suplemento literário da Academia Goiana de Letras ( encarte do jornal Diário da Manhã de Goiânia)

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Como eles (os escritores) descrevem os ambientes

O narrador de um texto literário, principalmente do romance, pode, dependendo do desenvolvimento da ação e, principalmente da intenção do autor, se colocar como participante ou um mero expectador privilegiado que conhece o terreno que o personagem está pisando.A descrição do ambiente onde se desenrola a ação pode definir a capacidade de comunicação entre o autor e o público ledor; se houver descrição pormenorizada de detalhes, poderá tornar a leitura cansativa e consequente descontinuidade da leitura, porém, se for muito econômica, poderá não transmitir a ideia que o autor tem em mente.A arte está na capacidade de, ao narrar, o autor deixar, nas entrelinhas, possibilidade para o leitor completar os detalhes, de acordo com a sua sensibilidade e, principalmente, sua imaginação; em outras palavras, ele “ajuda” o autor a escrever o livro.Machado de Assis sabia, como ninguém, a arte da narrativa; suas frases são curtas, diretas, pouco adjetivadas, tomava fôlego na construção da sentença, com o abusivo (abusivo?) uso da vírgula.Vejam comigo esta descrição de ambiente encontrado no romance Quincas Borba (início do capítulo III); o narrador (Machado de Assis), espírito bisbilhoteiro, por conhecer os costumes da época, brinca com o personagem (o novo rico Rubião), vivendo em um mundo que não era o dele: “Um criado trouxe o café. Rubião pegou na xícara e, enquanto lhe deitava açúcar, ia disfarçadamente mirando a bandeja, que era de prata lavrada. Prata, ouro, eram os metais que amava de coração; não gostava de bronze, mas, o amigo Palha disse-lhe que era matéria de preço, e assim se explica esse par de figuras que aqui está na sala, um Mefistófeles e um Fausto. Tivesse, porém, de escolher, escolheria a bandeja, – primor de argentaria, execução fina e acabada.”Outras vezes o narrador conhece o ambiente atual e tenta descrevê-lo, pela necessidade da ação, como se estivesse no remoto passado de mais de cem anos atrás (Couto de Magalhães, o último desbravador do império, Hélio Moreira), como veremos neste trecho (pag.130)“Foram minutos de enervante expectativa, Couto aproveitou para folhear alguns papéis que estavam dispostos sobre uma pequena mesa de centro, colocada bem próxima da poltrona onde ele se alojara.A sala onde ele estava era ornada por um mobiliário que, absolutamente, não pecava pela extravagância; duas ou três poltronas de couro preto, dois elegantes e vistosos pares de cadeiras de espaldares altos com assento em palha, um grande relógio carrilhão, duas ou três gravuras expostas nas paredes, que, aliás, eram recobertas por um papel com cores discretas, ao invés da tradicional pintura.Um grande cabide, um porta chapéus e um porta guarda-chuvas se localizavam nas imediações da porta de entrada; completando o conjunto, podia-se ver um banco de madeira de cor escura, definindo, em quase todas as residências londrinas, como sendo o local para se colocar o sobretudo; o assoalho era todo atapetado, dando ao ambiente um requinte que poderia ser superponível ao da nobreza".A "Prima Bete", inserido no conjunto da "Comédia Humana" é, provavelmente, um dos mais importantes romances de Honoré de Balzac, pois foi escrito em sua fase de maturidade literária.Destaco um trecho (1º capítulo) em que o personagem Crevel (oficial da Guarda Nacional) examinava o mobiliário do aposento onde se encontrava, enquanto aguardava a chegada da baronesa, com quem viera tratar de negócios: casamento.O leitor, pela descrição do ambiente, consegue descobrir a situação financeira da dona da casa e do oficial.“Observou as cortinas de seda, primitivamente vermelhas e já arroxeadas pela ação do sol, puídas nas pregas por longo uso: o tapete desbotado; os móveis desdourados, cuja seda, muito gasta, apresentava manchas; e expressões de desdém, contentamento e esperança se sucederam ingenuamente na cara larga do comerciante enriquecido. E ele se mirava ao espelho colocado em cima dum velho pêndulo do Império, procurando compor-se quando o roçagar do vestido de seda anunciou a entrada da baronesa. O capitão assumiu então uma posição conveniente. Sentando-se num pequeno sofá, que certamente fora muito bonito há 40 anos, a baronesa indicou a Crevel uma poltrona, que, na extremidade dos braços, tinha cabeças de esfinges bronzeadas, cuja pintura, entretanto, estava escamada, a ponto de deixar ver a madeira. Convidou-o a sentar-se.” Madame Bovary, de Flaubert, é um marco do romance descritivo; o autor é minucioso nas descrições dos ambientes, porém, não é enfadonho.No início do capítulo VI, há uma maravilhosa descrição da vila, vista por Emma, na voz do narrador:“Uma vez, quando a janela estava aberta e ela sentada no peitoril, ouviu o Ângelus.Era o início de abril, quando as primaveras se abrem; um vento morno rola nos canteiros lavrados e os jardins, como as mulheres, parecem enfeitar-se para as festas do verão. Por entre os barrotes do caramanchão e ao redor, mais além, via-se o rio na pradaria que desenhava na relva sinuosidades vagabundas”Parece que, também, vemos a paisagem com os olhos de Bovary.

Semana de Arte Moderna – 13 a 18 de fevereiro de 1922

Provavelmente nem os seus idealizadores, conhecidos como o "grupo dos cinco" (Mario e Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Tarsila do Amaral e Anita Malfatti) e, tampouco, o público que lotou as dependências do Teatro Municipal de São Paulo naquela noite de 13 de fevereiro de 1922, poderiam imaginar que aquela solenidade teria a repercussão que teve, transformando-se em um marco histórico para a cultura de São Paulo e, por extensão, do Brasil.Se fizermos uma retrospectiva histórica, podemos considerar que aquele movimento, Semana de Arte Moderna, ocorreu com alguma defasagem no tempo, senão, vejamos:Desde o século XVIII, com Voltaire (heresia anticlerical) e os iluministas, com ideias que batiam de frente com o modus vivendi, acentuando-se a partir da metade do século XIX, a vanguarda cultural europeia já estava envolvida e, principalmente, discutindo o termo Modernismo e os seus desdobramentos. Embora ainda hoje seja difícil definir o que seja esta expressão, ela era utilizada para todo tipo de inovação ou originalidade em qualquer das manifestações das artes, como a pintura, escultura, poesia, prosa, dança, música, arquitetura, teatro e o cinema.Os adeptos desta nova corrente eram contra a moderação, por considerá-la uma atitude burguesa, e tinham como axioma algumas afirmações consensuais: melhor que o conhecido era o desconhecido, melhor que o comum é o raro, o experimental é mais atraente que o rotineiro.Peter Gay (Modernismo- o fascínio da heresia, Cia. das Letras, 2009) nomina Charles Baudelaire como o primeiro herói do Modernismo; com a publicação de seu livro de poemas intitulado Flores do mal, ele foi parar na Corte de Justiça e obrigado a retirar daquela edição alguns poemas considerados obscenos.Pela mesma época, outro romancista, Gustave Flaubert, também sofreu processo por supostas obs-cenidades contidas no seu livro Madame Bovary; o que os juízes não perceberam ou, pelo menos, não discutiram, foi a fúria antiburguesa do autor, levando-o, inclusive, à incapacidade de descrever os personagens (burgueses) com isenção de ânimo. Era o pensamento consentâneo com a onda modernista; a aversão ao burguês e ao conservadorismo era tão extremada em Flaubert que ainda hoje assustamos com o tratamento dado à sua personagem Madame Bovary, dissecando-a como faria um cirurgião (J.Lemot, Gustave Flaubert dissecando Madame Bovary – Parodie "gravuras", 1869).Na pintura deve ser destacada a figura de Manet com a tela Olympia, cuja mulher nua, em posição desafiadora, chocava o público não acostumado com o realismo.Se quiséssemos definir um período para situar o auge das idéias modernistas, poderíamos, sem medo de errar, indicar as quatro décadas compreendidas entre os anos de 1880-1920 (Dadaísmo, Cubismo, Impressionismo, romances realistas, nos quais os romancistas passaram a investigar o sentimento dos personagens).Voltando à nossa discussão sobre os acontecimentos no Brasil, quando focamos a sua origem na conjunção de esforços daquele chamado "grupo dos cinco", chama-nos a atenção dois fatos: as figuras de Oswald e Mario de Andrade, realmente os articuladores do movimento e o momento da realização do evento, após o término da primeira guerra mundial, quando uma onda de patriotismo assolava a Europa, extrapolando as suas fronteiras (A Semana de 22: Revolução Estética? – Márcia Camargos, Cia. Ed. Nacional, 2007).Como aconteceu no passado (Flaubert, Picasso, Dali e outros, ficaram ricos à custa dos burgueses que eles combatiam, porém, compravam suas produções), os nossos modernistas contaram com a ajuda dos burgueses para poderem realizar a semana (Paulo Prado e Olivia Guedes Penteado, dentre outros) que garantiram o aluguel do Teatro Municipal de São Paulo e no final pagaram o prejuízo.Na noite de estréia o auditório estava lotado, com a aristocracia toda engalanada, trajando fraque e cartola, inclusive o governador do Estado de São Paulo, Washington Luiz, e o prefeito; coube a Graça Aranha fazer a conferência de estreia, "A emoção estética da arte moderna".Texto monótono e interminável, provavelmente de propósito, baseado no mesmo diapasão: "Daqui a pouco, junto com outros disparates, uma poesia liberta, uma música extravagante, virão revoltar os movidos pela força do passado." Depois se apresentou Villa-Lobos, usando chinelos; Menotti Del Picchia foi vaiado e Oswald de Andrade recebeu uma saraivada de batatas oriunda dos estudantes.O curioso, como acentua a jornalista e escritora Márcia Campos (citada acima), "um evento ignorado pelo grande público, criticado pela maioria da imprensa e tido como gozação pelos organizadores, acabou transformando-se em um marco histórico da cultura brasileira".Ainda hoje a semana de 1922 continua emblemática no imaginário das letras e das artes plásticas.